Há candidatos que enfrentam inúmeras dificuldades para participar do exame, que é uma das principais portas para o ensino superior, senão a única, como acontece em alguns casos. Este ano, por exemplo, mais de 65 mil pessoas solicitaram atendimento especializado para realizar o teste, das quais a maioria, cerca de 30 mil, têm déficit de atenção. Outras 8.622 têm baixa visão.
No estado de São Paulo, 302.392 dos estudantes que irão prestar a prova estão concluindo o ensino médio na rede pública. Eles representam quase 80% do total de candidatos com esse perfil.
Universidade pública como vetor
Os professores da Escola Preparatória da UFABC têm de auxiliar cerca de 600 estudantes a estarem prontos para o Enem, anualmente. O cursinho surgiu há 15 anos, por iniciativa de alunos da universidade e passou a ter o professor Leonardo José Steil entre seus docentes quando ele o percebeu como uma oportunidade de entrar no mundo da educação.
Químico de formação, fez carreira acadêmica, mas encerrado em laboratórios, Steil foi aprovado no concurso para docente da UFABC e precisou pensar sobre atividades de extensão. Foi quando alunos da graduação o contataram, perguntando se toparia se juntar a eles para colocar o projeto em prática. A intenção era, como toda atividade dessa natureza, trazer a comunidade do entorno da universidade para dentro dela, o que de fato aconteceu, uma vez que as aulas são dadas dentro da instituição.
"Essa oportunidade acabou, inclusive, mudando toda minha história de vida, minha trajetória acadêmica. Hoje em dia, eu faço pesquisa de ensino, na área de formação de professores. Estou fazendo pedagogia agora, pela Univesp [Universidade Virtual do Estado de São Paulo], porque senti necessidade de ter uma base pedagógica. Para mim, foi muito importante ter esse encontro, esse convite", afirma ele, que iniciou o curso de pedagogia aos 44 anos de idade.
No início do projeto, os organizadores tiveram que fazer mais esforço para divulgá-lo, visitando escolas e alimentando redes sociais. Com o tempo, porém, a procura começou a ser orgânica, com interessados chegando a ele, até a pandemia de covid-19, período em que o cursinho sofreu, como outros espaços de educação, impactos e o impeliram a retomar os canais de divulgação do serviço.
"A procura por continuar os estudos, aprofundá-los, fazer uma educação continuada tem diminuído. Então, o número de candidatos de vestibulares, que fazem o Enem foi diminuindo. Em 2023, voltou a crescer. Agora em 2024, também. E a gente espera que isso tenha sido um momento difícil para todo mundo e que se recupere o interesse por estudar", diz ele.
Conforme ressalta o professor, o cursinho acaba tendo diversos fins, podendo até melhorar a autoestima dos estudantes.
"Todos os cursinhos populares trabalham no reforço escolar, mas também em outros aspectos, como projeto de vida dos estudantes, autoimagem. E tudo isso acaba sendo fundamental não só para o acesso à educação, mas para a permanência do aluno, porque entrar em uma universidade pública, de qualidade, é um processo difícil, mas conseguir um diploma nessa universidade é mais difícil. Mais do que um projeto de acesso ao ensino superior, é de permanência no ensino superior", explica Steil.
Um dos fatores que mais contribuem para aumentar a confiança que os estudantes têm em si mesmos é a origem dos professores que lecionam na Escola Preparatória da UFABC: grande parte deles já esteve "do outro lado do balcão", ou seja, já foi aluno do cursinho e hoje estuda, em cursos de graduação ou pós-graduação, em universidades públicas. O coordenador garante que, mesmo diante de salas com 100 alunos, os alunos se sentem acolhidos porque sempre acabam se identificando com o jeito e a história de algum professor em particular, o que faz com que acreditem mais no seu próprio potencial. "Eles reconhecem naquele professor alguém que é como eles e conseguiu superar essa etapa de entrar no ensino superior", comenta.
Conteúdos da prova e política no cursinho
De acordo com o coordenador pedagógico do cursinho popular da Associação Cultural de Educadores e Professores das Universidades de São Paulo (Acepusp), o professor Renato Marques, na lista de perguntas sobre História do Brasil, deve se destacar o período do país enquanto colônia. "E, quanto a outras coisas gerais, idade moderna e Idade Média. Do ponto de Geografia, a parte que mais se destaca é a de geopolítica, mas também entram espaço agrário e espaço urbano. Na Filosofia, a ênfase maior, tanto no campo da filosofia antiga", enumera ele, que atua na área de humanidades.
A tendência é a de que haja, ainda, questões sobre movimentos sociais, o papel do Estado e o conceito de cidadania. Em menor número, deverão aparecer perguntas sobre o tema cultura e sociedade. Indagado sobre a possibilidade de os estudantes terem que demonstrar mais conhecimentos sobre o sul global, o professor diz que sim. "A presença de uma leitura de mundo menos eurocêntrica, menos voltada à visão do domínio do norte", relaciona.
O coordenador explica que o cursinho entende que é sua obrigação fazer com que os alunos compreendam que o contexto socioeconômico em que vivem é algo complexo e resultado de desigualdades sociais que podem ser atenuadas por meio da luta coletiva. "O curso acaba tendo um papel político, de fazer um despertar, uma tomada de consciência no sentido de que essa condição precária em que estão inseridos não acontece por acaso, não pode nunca ser naturalizada, que foi construída. E que o nosso papel é tentar oferecer condições para que tenham ferramentas para fazer o enfrentamento", opina ele, que também atribui valor à partilha, com os alunos, de diversas dimensões da cultura.
Tamira Paixão, de 18 anos, frequenta o cursinho da Acepusp e tenta equilibrar os estudos, afazeres domésticos e os cuidados de seu irmão de 2 anos, assumidos por ela quando a mãe tem que cumprir expediente presencial no Centro Cultural de São Paulo (CCSP) e seu padrasto, pai da criança, também está no trabalho. Apesar de jamais ter passado necessidade, ela sabe que a concorrência no Enem acaba se tornando uma competição desleal, com candidatos provenientes de escolas estruturadas e outros com mais obstáculos sociais a superar e egressos de escolas com um ensino mais fraco.
"Eu moro em um quintal em que moram minha avó, minha tia e eu. É um pouco barulhento e é, às vezes, difícil de me concentrar. Então, nesse período próximo da prova, estou estudando no cursinho, ficando para as aulas da tarde", diz ela, moradora de Pirituba, zona norte da capital, e que reduziu as aulas de dança de duas para uma vez por semana e começou a focar mais na preparação para o Enem há um mês.
A mãe de Tamira já ergueu o canudo com o diploma, após vencer a batalha e mãe solo que concilia o cotidiano com um emprego, e seu pai se formou no ano passado, em Logística, com 44 anos de idade. Para ele, o que importava era ter um diploma na área em que já trabalha, diferentemente dela, que quer uma graduação que proporcione realização profissional e pessoal. "O que eu queria realmente fazer é medicina veterinária, mas a nota de corte é muito alta. Estou segura de passar, mas você fica naquela de 'há pessoas mais preparadas, que estudaram muito mais'. Então, optei por Biologia, que tem uma nota de corte menor e tem a possibilidade de mudar de curso. Pensei muito em ter um emprego no futuro e também numa nota de corte que me deixe mais segura para passar."
Fonte: Hoje em Dia