Boolell concorda que a indústria farmacêutica deveria "ter ouvido mais as mulheres".
Em 2004, quando a Pfizer anunciou que estava suspendendo seu projeto, ele deu uma série de entrevistas para explicar os motivos.
"Há uma desconexão em muitas mulheres entre as mudanças na genitália e as mudanças no cérebro [durante a resposta sexual]", disse na ocasião. "Essa desconexão não existe entre os homens. Homens têm ereções consistentemente na presença de mulheres nuas e querem fazer sexo. Com as mulheres, as coisas dependem de uma miríade de fatores."
Depois do fracasso, as farmacêuticas gradativamente fecharam as torneiras e o ciclo do financiamento abundante para pesquisas em fisiologia sexual minguou.
Prause, que a essa altura já estava no departamento de Psiquiatria da Universidade da Califórnia como pesquisadora associada, começou a enfrentar resistência interna na instituição para continuar tocando um estudo sobre orgasmo e depressão.
Apesar de ter conseguido financiamento privado para sua pesquisa, ouviu da universidade que não poderia aceitar o dinheiro - uma postura que ela atribui ao caráter "controverso" de sua pesquisa. Terminado seu contrato com a UCLA, ela resolveu fundar a Liberos, um instituto de pesquisa independente.
"Há ainda um grande estigma em relação a qualquer coisa que se proponha a lidar com problemas sexuais das mulheres", diz ela.
"Uma pílula é considerado algo 'aceitável', mas qualquer coisa mais ligada à sexualidade é vista por muitas empresas como algo que pode causar dano à imagem, algo que pode ser visto como pornográfico. Há muita resistência."
A nova aposta nos antidepressivos
Passadas quase duas décadas, uma farmacêutica não havia desistido do viagra feminino - mas focava em outro órgão, o cérebro.
Em 2015, a Sprout colocou no mercado o flibanserin, medicamento originalmente desenvolvido como antidepressivo e que atua nos níveis dos hormônios dopamina e serotonina com a promessa de aumentar a libido feminina.
A droga foi recebida de forma crítica pelos especialistas. Primeiramente, pela eficácia, considerada baixa. Nos testes clínicos, o aumento no número de episódios sexuais satisfatórios (uma medida relativamente subjetiva usada pelo órgão regulatório americano, o FDA, para avaliar essa categoria de medicamentos) observados em um mês entre as participantes ficou entre 0,5 a 1, quando comparado aos resultados do grupo submetido ao placebo.
Ou seja, no intervalo de um mês, as mulheres que tomavam o medicamento relataram um episódio sexual satisfatório - ou menos - a mais do que aquelas que o não tomavam.
Muita gente considerou que o custo-benefício não valia a pena. Ao contrário do viagra, o flibanserin tem de ser tomado diariamente, e pode causar tontura, fadiga e náusea. Também não pode ser consumido por mulheres que ingerem álcool - como o uso é diário, quem opta por tomá-lo tem de parar de beber.
A droga chegou a ser rejeitada duas vezes pelo Food and Drug Administration (FDA), o órgão regulatório americano, antes de ser aprovada.
Uma das vozes críticas foi a da professora do departamento de Psicologia da Universidade de Utah Lisa Diamond, que pesquisa a sexualidade feminina. A cientista chegou a participar, a convite da farmacêutica que lançou o flibanserin, de um painel com especialistas que simulava o formato adotado pelo FDA - um procedimento que as empresas às vezes fazem para se preparar melhor para o processo "real".
Com acesso aos dados da pesquisa, chamaram-lhe atenção os registros diários dos relatos dados pelas participantes aos pesquisadores e o fato de que as mulheres que estavam no grupo placebo também tinham experimentado aumento da libido.
"A partir do momento em que as mulheres começaram a se perguntar sobre desejo, elas passaram a sentir desejo! Não seria mais barato comprar um diário do que tomar uma pílula?", ela brinca.
"Nós obviamente depreendemos de dados como esses que o desejo é uma experiência complexa. Envolve atenção. Não é como uma bolha que estoura, é uma experiência consciente. E se a única maneira pela qual você consegue medir é perguntando às pessoas, o dado é enviesado. É diferente de uma ereção, que é algo observável. A excitação feminina é tão mais complicada..."
Nesse sentido, Diamond menciona uma área de pesquisa da sexualidade feminina chamada de estudos de concordância, que investiga a conexão e desconexão entre a resposta sexual fisiológica e a resposta cerebral.
Nos homens, na maioria das vezes a excitação sexual subjetiva - ou seja, o que acontece no cérebro - conversa com o que está acontecendo na genitália. O homem sente desejo e tem uma ereção.
No caso das mulheres, é mais comum que ocorra uma desconexão entre as duas esferas. Uma mulher pode ter sinais físicos de excitação - o aumento de fluxo sanguíneo para a vagina e clitóris, por exemplo -, mas não necessariamente sentir desejo ou vontade de se engajar em alguma atividade sexual, e vice-versa.
"Pessoalmente acho que muito disso tem a ver com o fato de que, para os meninos, quando estão crescendo, é mais fácil ligar os sentimentos com o que está acontecendo no corpo. Meninas não são encorajadas a explorar o próprio corpo e não têm a menor ideia do que está acontecendo lá embaixo - então muitas mulheres acabam dissociando o corpo da cabeça", diz a pesquisadora.
"E a ideia de que você pode consertar isso com uma pílula é uma loucura, é não entender a complexidade do desejo sexual."
O enigma do desejo feminino
As vendas do flibanserin nunca decolaram. O medicamento hoje é licenciado em poucos países - o Brasil não está entre eles. Outras abordagens farmacológicas - como o Vyleesi, injeção de bremelanotida aprovado nos EUA em 2019 para mulheres em pré-menopausa com baixa libido - tampouco se mostraram frutíferas.
Parte do fracasso pode ter relação com o fato de que o desejo tem uma dimensão psicológica relevante para as mulheres.
É o que ajuda a explicar, por exemplo, porque a baixa libido as afeta mais que aos homens. Depressão, ansiedade, estresse, baixa autoestima, conflitos no relacionamento, vergonha do parceiro - tudo isso interfere mais no desejo feminino do que no masculino, pontua a professora Lori Brotto, da Universidade da Colúmbia Britânica.
"Os homens também se beneficiam dos efeitos dos níveis mais elevados de testosterona, que os permite sentir uma forma mais espontânea de desejo", ela acrescenta.
O desejo espontâneo foi durante muito tempo a ideia pré-concebida do que era desejo: uma vontade que simplesmente aparece, como a fome ou a sede. As correntes mais modernas do estudo da sexualidade feminina têm investigado, contudo, o que chamam de desejo sexual responsivo, aquele que surge como consequência de um estímulo.
Uma das cientistas que introduziu esse conceito no início dos anos 2000 foi a canadense Rosemary Basson. A pesquisadora também é autora da ideia da resposta sexual cíclica, que questiona o esquema da resposta sexual feminina como algo direto e linear - desejo, excitação, orgasmo e resolução.
Para Basson - e uma legião de cientistas hoje -, as coisas não são tão simples assim. O modelo linear tradicional, que vem de estudos das décadas de 60 e 70, ignora o que ela descreve como "componentes importantes da satisfação da mulher: confiança, intimidade, respeito, comunicação, afeto e prazer pelo toque".
Segundo ela, a resposta sexual das mulheres pode ser linear - quando não têm parceiro fixo, no início de um relacionamento, por exemplo. Já mulheres em relacionamentos mais longos tendem a experimentar a resposta sexual cíclica, em que desejo e excitação são etapas de um processo que se retroalimenta e também envolve intimidade emocional e estímulos sexuais psicológicos.
Essa discussão é importante não apenas para entender melhor as mulheres, mas para saber diferenciar o que são problemas que de fato precisam de tratamento e o que é da natureza da sexualidade feminina.
Se não uma pílula, o que então?
Lori Brotto, diretora do Laboratório de Saúde Sexual da Universidade da Colúmbia Britânica, vem estudando o uso de mindfulness (atenção plena) para tratar mulheres com baixa libido, com resultados bastante positivos.
Por meio da prática, ela conta, as mulheres conseguiram ganhar mais consciência das mudanças físicas que acontecem antes e durante a atividade sexual - a vasocongestão ou as sensações parecidas com "formigamento" típicas da excitação -, o que pode lhes ajudar a aumentar ou manter o desejo sexual subjetivo.
"Vimos que o mindfulness também atua sobre a miríade de pensamentos negativos que as mulheres com problemas sexuais têm de si mesmas, reduz o nível de autocrítica e aumenta a autocompaixão."
Prause acredita que, a essa altura, a indústria farmacêutica tenha desistido de procurar uma pílula que resolva os problemas sexuais das mulheres. "O que tenho visto são startups tocadas individualmente por alguns cientistas com ideias mais inovadoras."
A sua startup, a Liberos, ainda realiza pesquisas, mas recentemente a cientista voltou à UCLA.
Da última vez em que esteve ligada à universidade, em meados dos anos 2010, ela começou a enfrentar dificuldade para continuar seus experimentos em psicofisiologia sexual quando um "senhor" que tinha bastante poder sobre a política de financiamento de pesquisa na instituição "parecia realmente incomodado" com o que ela se propunha a investigar.
"Eu sempre amei a universidade, a ideia de ser cientista, de descobrir conhecimento - isso sempre teve mais apelo pra mim do que o mercado. Ele se aposentou, eu voltei", ela conta.
Desta vez, ela tentou se colocar numa posição que considera mais segura. Está no departamento de Medicina, focada em áreas ligadas à sexualidade feminina, mas agora como estatística.
"Eu brinco que ninguém precisa de um sexólogo, mas todo mundo precisa de um estatístico…"
Depois de trabalhar com a pesquisa do viagra, Boolell se afastou dos testes clínicos relacionados à sexualidade. Passou por outras farmacêuticas na Suíça, França e Estados Unidos, mas em setores ligados às cardiopatias e à diabetes, suas áreas de expertise. Hoje atua como consultor em Londres.
No fim da conversa por telefone, a reportagem pergunta se ele acha que uma droga vai algum dia resolver os problemas sexuais das mulheres.
"Seria triste se fosse uma pílula, né? Acho que somos mais do que isso."
"As pessoas hoje querem uma pílula para tudo - para perder peso, resolver seus problemas sexuais. Mas o corpo é muito mais do que isso. Nós somos resultado de milhões de anos de evolução. O corpo humano é uma máquina incrível - e acreditar que uma pílula pode resolver todos os problemas é uma visão acanhada."
Fonte: G-1