Para compreender este texto, foi preciso que o leitor passasse pelo processo de alfabetização na escola. O letramento permite o reconhecimento de grafemas (letras), representando-os em fonemas (sons) e, por fim, a construção de sentido na leitura e na escrita. Segundo a Unesco, existem quatro eixos de compreensão sobre o que é a alfabetização, sendo ressaltado o fato de ser um processo de aprendizagem e aquisição de habilidades básicas que necessita de início, meio e fim.
Com a pandemia, milhões de crianças tiveram este processo alterado, senão interrompido, já que as aulas foram paralisadas e depois retomadas em formato remoto. O modelo de Ensino Remoto Emergencial (ERE) não abrangia a realidade de muitas famílias, dada a falta de acesso à internet e de tempo, por parte dos familiares, para auxiliar a criança, por exemplo. De acordo com a Unicef e a organização Cenpec Educação, durante a pandemia, das mais de 5 milhões de crianças e adolescentes que estavam sem acesso à educação no Brasil em novembro de 2020, cerca de 40% tinham entre 6 e 10 anos de idade, quando é feita a alfabetização.
Para alfabetizar, o ideal é que o processo seja iniciado no primeiro ano e finalizado até o segundo ano do ensino fundamental. A neuropsicopedagoga e liderança acadêmica da Escola Integra, Jéssica Ferreira, explica que é preciso focar na “personalização do processo”, respeitando o tempo de cada criança e utilizando os melhores recursos e estratégias dos diferentes métodos. “Não existe método certo ou errado, mas sim abordagens diferentes que se complementam e são ainda mais eficazes se utilizadas de maneira estratégica pelo professor.”
Para ela, a falta de aulas na fase da alfabetização prejudicou a criança de alguma forma, seja no que compete à personalização do trabalho do professor, seja na ausência de um planejamento que contemplasse o modelo virtual de aprendizagem. “Como especialista, entendo que a alfabetização é marcada por etapas. Pular ou deixar de vivenciar uma delas compromete o desenvolvimento de habilidades essenciais para a aquisição da leitura e da escrita”, argumenta Jéssica.
“Muita dificuldade de concentração. É uma criança não muito social, prefere ficar sozinha.” Assim enxerga o taxista Alisson Lopes, pai de uma menina de 11 anos, sobre as consequências da pandemia e do distanciamento social na vida de sua filha. Ele observa que não somente a menina está com dificuldades, os colegas de sala dela, que agora estão indo para o sétimo ano do ensino fundamental, apresentam as mesmas questões. Por conta de não ter vivido experiências essenciais para a fase da pré-adolescência, como começar a passear com os amigos, ir a algumas festinhas dos colegas e outras atividades sociais, ele acredita que ela e os amigos estão um pouco “perdidos” para a idade. “É uma pré-adolescente, mas com a cabeça de uma criança”, finaliza ele.
A sala de aula
As aulas, que foram suspensas em 16 de março de 2020, por causa da pandemia, retornaram de forma híbrida (presencial e on-line) em 28 de setembro de 2021. Agora, após mais de um ano de retorno, a professora do primeiro ano do ensino fundamental e coordenadora pedagógica da educação infantil da Escola Municipal Professor Oswaldo Velloso, Eliani Siqueira Santos, nota os reflexos na sala de aula depois de tanto tempo à distância. “O nosso retorno foi muito difícil. Toda a comunidade escolar estava muito insegura, e os alunos, ‘agitadíssimos’. Nos dois primeiros meses foi necessário ter muita paciência e conversa para adaptá-los à rotina escolar”, conta a professora.
No âmbito da alfabetização, ela conta que o uso de máscaras foi um entrave para o ensino. Além da barreira física da máscara, barreiras psicoemocionais também surgiram, como a falta de habilidades de comunicação e compreensão. “Nas turmas de terceiro e quarto anos, estamos encontrando muitas dificuldades com relação ao processo de alfabetização, pois estes alunos só tiveram acesso ao ensino remoto.” Ela ainda observa que, em contrapartida, em relação aos alunos das turmas atuais de primeiro e segundo anos, houve um grande avanço na alfabetização e que a maioria está no nível de leitura e escrita esperados, já que começaram o processo de forma presencial.
Para além das dificuldades de aprendizado que os alunos enfrentam, o emocional também está em jogo. Dois anos com pouco contato com outras crianças gerou marcas. “No dia a dia da escola, é possível perceber uma grande dificuldade de estabelecer conexões interpessoais como antes, assim como lidar com sentimentos de frustração ou incômodo”, conta a neuropsicopedagoga Jéssica Ferreira. A professora Eliani também notou as dificuldades em sala de aula após o retorno, mas que já houve uma melhora na comunicação e nas brincadeiras das crianças, em relação ao início do ano. “Foi necessário trabalhar as habilidades referentes ao desenvolvimento da fala, do emocional e motor.”
Luciana Abreu, mãe de Alice, 7 anos, que está no segundo ano do ensino fundamental na Escola Integra, relata que sua filha foi alfabetizada durante a pandemia. Ela conta que, por causa da forte presença da escola e da família, não percebeu dificuldade fora do normal em relação ao desenvolvimento intelectual. Contudo, a maior dificuldade foi a questão da socialização. “O fato de ela ser filha única fez com que ela convivesse somente com adultos por um longo período. Então, para equilibrar esta situação, tentamos promover ao máximo o encontro com parentes ou amigos próximos que também tinham crianças nesta situação e aumentamos muito os passeios à pracinha.” Ela finaliza dizendo que após a pandemia a escola se tornou o lugar preferido da filha.
Atraso escolar
Uma das possíveis consequências da dificuldade no aprendizado, por causa da falta de aulas presenciais, seria o atraso escolar. A professora Eliani Santos explica que o atraso pode acontecer, mas que isso não necessariamente significa que os índices de repetência vão aumentar. Segundo ela, há flexibilidade de planejamento e a possibilidade de reorganizar os conteúdos, estabelecendo prioridades. Assim, quando os alunos estiverem com problemas para entender a matéria, o ideal seria realizar um diagnóstico das competências já consolidadas pelos estudantes e depois rever o planejamento anual.
Dessa forma, seria possível elaborar novas estratégias, como a priorização de conteúdos, um trabalho paralelo de recuperação ou até mesmo um plano de desenvolvimento individual, para que os objetivos de cada ano escolar sejam alcançados. Eliani ainda ressalta a importância da compreensão familiar sobre este tema, bem como o seu auxílio nos estudos da criança, acompanhando de perto a sua evolução, garantindo que ela realize as tarefas de casa e que não falte às aulas. “A parceria com a família é extremamente importante, pois para o êxito escolar é necessário a garantia da frequência escolar, que é um grande desafio da escola”, finaliza a professora.
Fonte: Tribuna de Minas